Você tem fome de quê? Jovana Cestille, terra viva e comida saudável

Descendente dos "braços baratos do café”, a assistente social formada pela UEL hoje se destaca na produção de orgânicos e pela atuação no MST  

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Por Mariana Ornelas e Redação Alumni UEL

Foto em destque: Jovana (à dir.) comercializa produtos orgânicos no Canto do MARL - Movimento dos Artistas de Rua de Londrina / Reprodução/Facebook/MARL

A história de Jovana Cestille, 47 anos, assistente social formada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), começa com os pés na terra e por aí continua, décadas depois. Londrinense de coração, ela nasceu em Jardim Alegre, cidade paranaense a 150 km de Londrina. Filha de agricultores de café, a família teve que buscar um novo rumo após a grande geada de 1975, que dizimou os cafezais do norte do Paraná. 

Os “braços baratos do café”, como diz Eduardo Galeano em “As veias abertas da América Latina”, tiveram que enfrentar uma nova vida.  Jovana, ainda criança, viu as transformações familiares e a luta contínua pela sobrevivência. O pai foi trabalhar em uma fábrica, e a família se aninhou na Vila Casoni. Adolescente, ingressou na Pastoral da Juventude do Jardim Leonor e foi lá que os novos amigos a incentivaram a cursar a UEL. 

“Eu sou de um tempo em que não existiam programas de incentivo aos jovens para irem à universidade. Era muito difícil para a juventude da periferia chegar lá”, lembra Jovana. Os debates na Pastoral da Juventude, as análises de conjuntura e a discussão sobre a importância da educação a impulsionaram. “Mesmo com dificuldades, tentei Serviço Social e consegui entrar”, diz Jovana, que iniciou os estudos em 1995.

Na Pastoral da Juventude, a nova estudante da UEL já exercia um trabalho social na comunidade do Jardim Leonor, de reforço escolar junto a crianças. A partir daí, resolveu se aprofundar nos estudos sobre a garantia dos direitos sociais. Dentro da UEL, relembra como marcante um texto do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (criador da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, nos anos 90) apresentada, em uma das disciplinas, pela professora e ex-aluna da UEL Márcia Lopes, que décadas depois viria a ser secretária executiva e ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no governo federal.

Em 1997, Jovana foi trabalhar em uma secretaria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Londrina. “Foi ali que ingressei no movimento. Eu conseguia desenvolver a teoria das aulas da faculdade, na prática, no MST. Depois fui trabalhar nos assentamentos e me aproximei do setor de formação e educação”, conta. Já formada, a nova assistente social foi trabalhar na Secretaria Estadual do MST em Curitiba, no setor de comunicação e cultura. Foram nove anos desenvolvendo ações em todo o estado do Paraná. 

“Em alguns momentos eu também atuei como assistente social nas equipes de extensão rural, mas nem sempre, já que o governo federal nunca garantiu essa política pública nos assentamentos”, afirma Jovana. Mesmo assim, tudo o que aprendeu na teoria, dentro da Universidade, ela diz que teve a oportunidade de desenvolver na prática, no movimento. “A gente nunca deixa de ser assistente social. Tudo o que eu aprendi ajuda neste processo de militância”.  Para desenvolver ainda mais esse trabalho, Jovana fez o mestrado em Tecnologia e Sociedade, na UTFPR, em Curitiba.

Vacina no braço, comida no prato

Jovana também formou família no MST. Em uma marcha, em 2009, conheceu Davi, seu companheiro de luta e se uniram. Os dois têm um filho, Lorenzo. Davi é de Querência do Norte e foram para lá em 2009. Depois da perda do pai, Jovana veio para o Eli Vive, a 60 km de Londrina, o maior assentamento do MST no país em área metropolitana, com mais de 500 famílias assentadas, divididas no Eli Vive I e II. A primeira ocupação começou em 1991, sob muitos ataques, ameaças e até assassinatos. Só em 2010, após uma ocupação por 120 famílias do MST, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) adquiriu as fazendas Guairacá e Peninha, que deram origem ao  assentamento. Jovana e sua família vivem no Eli Vive I. 

Jovana Cestille: "Algumas pessoas acham que o MST é um bando de baderneiro, de criminosos, o que não é verdade. Para se tornar um assentado, existe um regimento interno que é discutido dentro do próprio movimento, temos setores, divisões, diretórios"

"A comunidade local que define se terá escola dentro do assentamento, se terá horta comunitária, por exemplo. Tudo passa pela deliberação das próprias famílias. Desde 2000, o MST trabalha com a importância da participação das mulheres e cada setor tem que ter pelo menos uma companheira”, continua a agricultora. 

Jovana reitera a importância da educação - principalmente da educação no campo - e da saúde para o movimento. “Uma das lutas do MST aqui é a construção de uma Unidade Básica de Saúde no local do Eli Vive, ainda mais por conta da pandemia. O trabalho dos agentes populares de saúde dentro dos assentamentos também foi retomado por conta da Covid-19. A cada 50 famílias, constitui-se uma “brigada” e um assistente popular de saúde para ficar atento aos casos de coronavírus dentro do local. O MST do Eli Vive tem três separações importantes nas linhas de frente: educação, saúde e produção. 

A cooperativa do MST abastece o Eli Vive e produz entre 5 e 8 toneladas de alimentos que, semanalmente, vão para as escolas estaduais de Londrina, Cambé e Ibiporã. Também está sendo construída uma agroindústria de derivados de milho. “Quando começou a pandemia, ficamos muito perdidos. O governo do Paraná disse que manteria o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), porém, apenas de 15 em 15 dias.”

O Eli Vive e outros assentamentos e ocupações do MSTNorte fazem parte do Feirão da Resistência e da Reforma Agrária, que acontece em Londrina há quatro anos no espaço do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina (MRL), na avenida Duque de Caxias, 3241. O Feirão também ocorre em parceria com o Sindicato dos Jornalistas do Norte do Paraná. "Tínhamos parado o Feirão no começo de 2020, mas em maio retomamos de forma online. Em agosto de 2021, inauguramos o espaço físico do Armazém do Campo, ali no centro de Londrina, bem perto da Concha Acústica [Rua Piauí, 95, loja 2].”

“Não só o Movimento dos Sem Terra mas toda a agricultura familiar vem sofrendo muito. É muito difícil conseguir o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] para custear a produção. Este governo está acabando com a Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], que mantinha os estoques de alimentos e regulava os preços. Então, não está tendo estoque de arroz e milho, por exemplo”, fala Jovana. Segundo ela, outros programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), em que a Conab comprava alimentos que podiam ser doados para instituições e organizações não governamentais, também estão sendo dizimados. “O PAA ajudava no programa Mesa Brasil, que redistribuía alimentos para a população mais vulnerável. É um efeito em cadeia”, afirma.

Jovana aponta a contradição que vive o Brasil, onde um número cada vez mais alto de agrotóxicos é liberado, as safras batem recorde, enquanto  muitas famílias passam fome. “Tudo por conta do agronegócio e das commodities dos grãos”, considera a produtora rural.  “A produção incentivada pelo governo é de soja e milho, produtos que vão para fora do país”, reitera. “Antes, tinha um limite da produção que deveria ficar dentro do Brasil para garantir a alimentação da população. Hoje, não existe mais este limite. Às vezes tem que importar para conseguir suprir.” 

A agricultora e assistente social e seus companheiros do Eli Vive vêm trilhando um outro caminho, incentivando cada vez mais a divisão de sua produção coletiva com a população mais vulnerável, em situação de miséria crescente e fome, em especial neste momento de grandes dificuldades.  “Dividimos nossa colheita em três: consumo próprio, comercialização e doação. Gostaríamos de doar muito mais, mas como estamos sem incentivo e fomento, fazemos o que podemos.”, conta Jovana.

Neagro - UEL e outros apoios

Apesar das dificuldades por conta da pandemia, Jovana afirma que a procura por alimentos orgânicos e saudáveis aumentou. Ela é produtora rural em sistema de agroecologia há mais de quatro anos e em 2021 conseguiu o selo de orgânico da Tecpa, o Instituto de Tecnologia do Paraná. “Tenho uma agrofloresta e a gente concilia árvores para madeira, árvores frutíferas, hortaliças como tomate, alface, couve, café e plantas medicinais, porque tenho uma parceria na produção de óleos essenciais. Para produzir em escalas pequenas, é necessária essa diversidade para que não corramos o risco de perdermos a produção por conta de muita seca ou muita chuva, pois a própria produção se equilibra”, diz. Ela foi a primeira agricultora a conseguir a certificação de produtos orgânicos dentro do assentamento Eli Vive, a chamada certificação auditada, feita por um técnico do programa estadual Paraná Mais Orgânico. 

Desde o começo, a produção agroecológica de Jovana teve acompanhamento do Núcleo de Estudos de Agroecologia (Neagro) da UEL. A assistente social e produtora rural conta: “a nossa parceria com o Neagro não é só da vistoria, é toda a orientação da produção. Trocamos mensagens constantes. Eles nos enviam sementes, mudas, temos o apoio também do viveiro do  Programa de Biodiversidade da UEL que tem árvores nativas, plantamos algumas aqui, como uvaia e gabiroba. É uma parceria que abre muitas possibilidades, uma relação de construção contínua com os pesquisadores”, diz Jovana. 

Leia mais: Órgão da UEL apoia pequenos produtores rurais na produção de orgânicos e preservação do meio-ambiente

“Eu espero que, agora que as pessoas estão vivenciando toda essa conjuntura, todas essas dificuldades da pandemia, tomem consciência da importância de um alimento saudável, pois a nossa saúde começa pela boca. Que isso ajude a fortalecer a luta contra os agrotóxicos e a favor dos agricultores familiares, consumindo no Armazém do Campo, nas feiras e em outros lugares. Nós lutamos pela soberania alimentar e também pela segurança alimentar,” finaliza a assistente social, agricultora e ex-aluna da UEL.

Serviço

Armazém do Campo – Rua Piauí, 95 loja 2

Feirão da Resistência e da Reforma Agrária (siga o perfil no Instagram para saber como fazer seu pedido) - Canto do MARL - Avenida Duque de Caxias, 3241