Cresce a proporção de negros no comando de grupos de pesquisa do país

Segundo análise do Ipea, percentual de líderes pretos e pardos subiu de 8,1% para 22,6% do total entre 2000 e 2023. A quantidade de grupos com ao menos um pesquisador negro – líder ou não – também aumentou: de 48,6% em 2000 para 89,6% em 2023.

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A proporção de pesquisadores pretos e pardos que lideram grupos de pesquisa no Brasil praticamente triplicou entre 2000 e 2023: subiu de 8,1% para 22,6% do total, chegando a quase 15 mil dos 66 mil líderes do país. A análise foi realizada por pesquisadores dos institutos de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), com base em um recente censo do Diretório de Grupos de Pesquisa (DPG) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Houve um crescimento expressivo, mas ainda há uma grande sub-representação de pretos e pardos na coordenação de grupos de pesquisa em todas as regiões e áreas do conhecimento”, avalia Tulio Chiarini, economista do Ipea, um dos autores do estudo. Segundo o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra – que reúne pretos e pardos – representa 55,5% do total do país.

Mesmo em regiões onde negros são maioria, como o Norte (76% da população), o Nordeste (72,6%) e o Centro-Oeste (61,6%), a parcela de líderes que se autodeclararam pretos e pardos é inferior à proporção deles na sociedade (44,4%, 37,7% e 24,2%, respectivamente). No Sudeste e no Sul, regiões com menor percentual de negros (49,3% e 26,7% dos habitantes, respectivamente), apenas 15,1% e 7,8% dos coordenadores de grupos de pesquisa se identificam como pretos e pardos. A quantidade de grupos com ao menos um pesquisador negro – líder ou não – também aumentou: de 48,6% em 2000 para 89,6% em 2023 (um mesmo pesquisador pode estar em mais de um grupo). “Mas persistem barreiras estruturais que impedem a ascensão a posições de liderança”, observa Chiarini.

A física Zélia Maria da Costa Ludwig, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conta que foi um grande desafio criar, em 2008, o Grupo de Síntese e Caracterização de Materiais Nanoestruturados, que lidera. Ela trabalha com pontos quânticos – nanocristais semicondutores com propriedades ópticas, para aplicação em sensores e células fotovoltaicas – e está entre 4,4% das mulheres negras que coordenam grupos na área de física. “Como mulher negra, levei anos para obter financiamento e montar uma infraestrutura básica de pesquisa experimental”, diz ela, que estabeleceu conexões e parcerias com outros grupos como um caminho para desenvolver suas pesquisas. “Tive uma trajetória favorecida por uma rede de apoio e acesso a oportunidades. Pude estudar, viajar, aprender inglês, mas essa não é a realidade da maioria das meninas negras”, complementa. Ela critica o baixo número de bolsas de produtividade no CNPq, segundo dados de julho 2023 compilados pelo grupo Parent in Science. “Do total de bolsistas, apenas 0,8% é de mulheres pretas e 4,8% pardas. Chegar ao topo da carreira exige muito.”

A pesquisa do Ipea não analisou as razões que elevaram a participação de pretos e pardos nos grupos de pesquisa, mas os autores trabalham com um conjunto de hipóteses. “Imaginamos que algumas políticas públicas dos últimos anos foram fundamentais”, diz Chiarini. Uma ação que parece ter contribuído foi o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído em 2007, que quase duplicou o número de vagas para estudantes em instituições federais e levou à contratação de cerca de 20 mil novos professores. “Com a abertura de cargos de docência, surgiram oportunidades para a inclusão de pretos e pardos, principalmente em regiões onde eles são mais representativos na população”, explica o economista. Entre 2000 e 2023, o número de líderes pretos e pardos no Nordeste subiu de 22,3% para 37,7%. No Centro-Oeste, o avanço foi de 10,2% para 24,2%. No Norte, de 33% para 44,4%.

De acordo com Chiarini, a Lei de Cotas, que instituiu a reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas nas instituições federais de ensino superior a partir de 2012, também pode ter contribuído, embora seus reflexos só devam aparecer para valer nos próximos anos, quando os beneficiados por ações afirmativas na graduação começarem a ascender na carreira científica. Para a física Débora Menezes, diretora de Análise de Resultados e Soluções Digitais do CNPq, que não participou da pesquisa, os efeitos dessas políticas públicas vêm ganhando evidência.

Entre 2005 e 2025, o número de pardos com bolsas de iniciação científica do CNPq passou de 14,1% para 27,5%, enquanto os bolsistas de mestrado, de 13,9% para 26,6%, e os de doutorado de 13,2% para 26%. Entre os autodeclarados pretos, no mesmo período, a participação entre bolsistas de iniciação científica do CNPq foi de 2,9% para 8,8%; de mestrado, de 2,9% para 10,7%; e de doutorado de 2,8% para 9,5%.

As políticas afirmativas também podem ter estimulado indivíduos pretos e pardos a se identificarem publicamente dessa forma. “Hoje, é mais comum que as pessoas se identifiquem como negras, mas, historicamente, a população brasileira teve dificuldades nesse reconhecimento”, observa a cientista social Carla Pereira Silva, do IFNMG, uma das autoras do estudo. Em sua avaliação, um dos efeitos das políticas de cotas é fazer com que o indivíduo reflita sobre sua identidade racial. “Essa experiência foi bem descrita pela psiquiatra brasileira Neusa Santos Souza [1948-2008], com o conceito de ‘tornar-se negro’, que trata desse processo de consciência racial.” Menezes, no CNPq, confirma que o perfil dos dados de autodeclaração racial no Diretório de Grupos de Pesquisa sofreu uma mudança. “A quantidade de pessoas que antes marcavam ‘não declarado’ tem diminuído, enquanto a de pessoas que se identificam como pardas tem aumentado.”

Em 2000, os homens negros representavam 4,9% do total de líderes de grupos de pesquisa, as negras, 3,2%. Já em 2023, esses percentuais cresceram para 12,2% e 10,4%, respectivamente. Em ciências da vida, as áreas de enfermagem, farmácia e saúde coletiva continuam sendo os espaços com maior presença de mulheres negras (com 19,8%, 12,3% e 18,4%, respectivamente). Em medicina, homens negros passaram de 2,4% para 7% no período e mulheres negras de 1,4% para 9,2%. Nas ciências duras, por sua vez, a presença de homens pretos e pardos cresceu de forma mais destacada em áreas como ciência da computação (de 4,9% para 17,3%) e engenharia nuclear (de 4,8% para 15,4%). Mulheres negras aumentaram sua presença, mas ainda não ultrapassam 12% em nenhuma área – em engenharia aeroespacial e naval, ainda não há nenhuma delas em posições de liderança. Nas humanidades, elas lideram em áreas como economia doméstica (33,3%) e serviço social (25,7%).

“O número de mulheres participantes em grupos de pesquisa cresceu em todas as regiões, mas esse crescimento refletiu-se de forma modesta nas posições de liderança”, destaca Silva. A cientista social, além de coautora do estudo, está entre o contingente de 15,7% de mulheres negras que coordenavam grupos de pesquisa no país na área de sociologia em 2023 (as brancas eram 25,7%) – ela comanda o grupo Ponto de Vista: Estudos de Sociologia do Conhecimento, do IFNMG, criado em 2019. “Sou líder porque criei o grupo. Mas, ao longo da carreira, a gente sempre lida com o racismo sistêmico.” Ela diz que, recentemente, tem notado uma valorização maior de seu olhar como pesquisadora negra. “Com a criação de políticas de diversidade em algumas instituições, mais oportunidades têm surgido.”

O físico Antonio Carlos Fontes dos Santos, um dos coordenadores do Laboratório de Colisões Atômicas e Moleculares do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), observa que os obstáculos costumam aparecer já no começo da carreira acadêmica dos pretos e pardos. “No início é preciso se manter com bolsas. Para um jovem pesquisador negro, que geralmente não vem da classe média, a realidade se impõe e, muitas vezes, ele acaba desistindo para se sustentar de outra forma”, diz.

Outro ponto central, afirma, é o preconceito. “Precisamos provar o tempo todo que somos capazes e merecemos estar ali.” Em dezembro de 2017, Santos publicou um artigo na revista The Physics Teacher intitulado “Você não parece um físico”, chamando a atenção para estereótipos, discriminação e preconceitos que pessoas negras enfrentam no meio acadêmico. Ele cita frases que já ouviu ao longo da carreira: “Você não parece um físico”; “Ah, então o senhor é professor universitário? Mas é substituto, não é?”; “Ok, o senhor é professor, mas faz pesquisa?”.

“O crescimento de pesquisadores negros e negras representa um avanço, mas ainda não o lugar que nós deveríamos ocupar na academia”, avalia a pedagoga Débora Cristina Jeffrey, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretora da Faculdade de Educação da instituição desde maio de 2024. Ela foi a primeira mulher negra a ocupar um posto de direção em uma unidade de pesquisa, ensino e extensão na história da universidade.

Jeffrey está entre os 16,3% de mulheres negras que lideravam um grupo de pesquisa na área de educação (ante 40,9% de mulheres brancas) em 2023. Desde 2014, coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (Gepale). Como docente da Unicamp, diz que enfrentou resistência institucional para obter uma sala para seu grupo.

“Começamos em um espaço minúsculo. Prometeram outro, mas repassaram a outros grupos, alegando perda da nossa solicitação”, relata. Hoje, o grupo está em um novo espaço provisório e deve mudar em breve para uma sala definitiva. “Mesmo assim, nos tornamos um ponto de acolhimento para estudantes negros. Aqueles que não têm computador, por exemplo, podem usar nossa estrutura”, diz.

Neste ano, o grupo iniciou um estudo sobre políticas afirmativas nas esferas federal e estadual, financiado pelo CNPq. “Com o avanço das cotas e a maior presença de estudantes e docentes negros, queremos entender como essas políticas se concretizam nas instituições. Há gestão efetiva nas pró-reitorias de Pesquisa? Existe diálogo com as agências de fomento?”, questiona. Para ela, o avanço apontado no estudo do Ipea impõe o desafio de criar políticas de acesso ao financiamento direcionadas a pesquisadores pretos e pardos.

Sarah Schmidt, da Revista Pesquisa FAPESP

A reportagem acima foi publicada com o título “Mais lideranças negras” na edição impressa nº 353, de julho de 2025 da Revista FAPESP.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a  licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. 

Leia o original aqui.

Foto: Pexels