A pandemia e a desigualdade de gênero

Pedagoga formada na UEL pesquisa o problema entre estudantes lusófonos; projeto recebeu prêmio internacional

Por Murilo Pajolla

 

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Nos primeiros momentos do surto de coronavírus, pesquisadores correram para investigar os impactos da crise na economia e na saúde pública. Enquanto isso, um problema anterior à pandemia  - mas igualmente nefasto - aprofundava-se silenciosamente, potencializado pela quarentena: a desigualdade de gênero. 

Em maio do ano passado, Heloísa Botelho, egressa da graduação em Psicologia na Universidade Estadual de Londrina, já percebia que jovens estudantes submetidas ao confinamento estavam sobrecarregadas de tarefas domésticas e mais suscetíveis à violência dentro do próprio lar. 

“Quando eu lidava com os alunos  percebi comportamentos, sinais de que algumas pessoas poderiam estar sofrendo muita opressão, violência psicológica e até violência física em decorrência da quarentena, principalmente as meninas”, relata com preocupação. Esse olhar resultou em uma investigação premiada internacionalmente que terá continuidade em outras universidades mundo afora.  

Servidora das redes municipal e estadual de educação na área de gestão escolar, Heloísa é hoje mestranda do curso de Ciências da Educação, Administração, Regulação e Políticas Educativas da Universidade de Évora, no qual desenvolve o projeto “Diálogos estudantis em tempos de pandemia Covid-19”. 

A iniciativa começou através de um grupo de conversas virtuais semanais com 22 jovens do último ano do ensino médio de seis países lusófonos, em seis continentes. O objetivo dos encontros é o desenvolvimento de habilidades sócio-emocionais com foco em mediações de conflitos e relações interpessoais. 

“Um dos indicadores de que havia algo errado foram as câmeras desligadas durante as aulas, meninas que entravam atrasadas nos encontros e que às vezes não conseguiam acompanhar as discussões. Como são vários países, de contextos socioeconômicos diferentes, havia alunas que falavam que tinham que pegar lenha para a lareira. Diziam que tinham que desligar a câmera porque estavam com o irmão no colo, por exemplo. Mandavam mensagem no privado justificando que saíram do vídeo porque estavam no meio de um afazer”, diz Heloísa. 

A presença constante no ambiente doméstico fazia com que as famílias não reconhecessem o momento educativo. Uma vez dentro de casa, todas as tarefas eram direcionadas principalmente às meninas. “Então, com isso, elas estavam se desmotivando porque estavam muito sobrecarregadas, tendo que fazer duas ou três tarefas ao mesmo tempo. Algumas acompanhavam as aulas com o celular no bolso e às vezes perdiam conteúdos e até pediam para repetir. Eu percebia que existia o interesse, mas ao mesmo tempo existiam esses fatores que estavam interferindo no resultado delas”, observou.

Com base nessas constatações, Heloísa idealizou uma discussão virtual direcionada exclusivamente para tratar a questão. “Por ser um projeto cuja metodologia é a investigação-ação, o desdobramento foi aprofundar essa temática do impacto da violência. Desse contexto surgiu a sala destinada somente para tratar da violência. Só que é importante deixar claro que a violência não é somente em relação às meninas, tanto que tratei como questão de violência doméstica. Os idosos e as crianças também sofreram muito. Mas a principal vítima é sempre a mulher, seguida dos idosos”, avalia. 

Pesquisa gerou interesse internacional 

Convencida de que a ciência é um dos caminhos para superar os problemas sociais, Heloísa decidiu se inscrever no prêmio internacional Uni-COVID 19, do banco Santander, voltado a acadêmicos de universidades portuguesas que estudam estratégias de redução dos impactos negativos da pandemia. Em dezembro de 2020, seu projeto, intitulado “O protagonismo da mulher em tempos de Covid-19”, um desdobramento da pesquisa desenvolvida no mestrado, foi um dos 14 premiados entre 336 participantes.

Com a visibilidade proporcionada pela premiação, novos parceiros ligados à temática da desigualdade de gênero se interessaram por ampliar o trabalho iniciado por Heloísa. Será formado um grupo de pesquisa internacional composto por universidades dos países envolvidos no projeto. Há um indicativo de que a UEL também vai participar. “A ciência tem o papel de construir a sociedade que nós queremos no futuro. O cientista tem um olho na realidade e outro naquilo que ele almeja. No nosso caso, almejamos uma sociedade com menos violência e com mais igualdade”, defende.  

Para além do circuito universitário, a acadêmica espera que o trabalho favoreça a criação de políticas públicas educativas capazes de combater a violência de gênero. “A pandemia evidenciou características humanas muito retrógradas, deixou explícito como a nossa sociedade é ainda muito machista. Eu percebi a necessidade de a gente ter políticas voltadas para o homem. Porque o homem precisa se perceber dentro dessa situação de violência. Quem está cometendo a violência é ele. Por que ele tem esse comportamento de agressor?”.