Carvalho e Vinhedo: árvores que se tornam histórias

Professor aposentado da UEL, Alcides Carvalho conta sua trajetória na literatura, na luta por direitos e na produção de vinho

Por Mariana Ornelas 

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“Ter sido estudante na UEL e depois me tornar professor me ajudou a desenvolver uma relação melhor com a educação. Eu sempre achei importante conhecer o aluno, porque, quando estudante, queria que os professores também se colocassem em meu lugar. Sempre fui de fazer perguntas aos estudantes para ter uma proximidade, nunca passava o intervalo das aulas na sala dos professores, mas com os estudantes, falando da vida,” afirma Alcides Vitor de Carvalho. No começo da entrevista, Alcides também perguntou sobre mim. “E você? Veio da onde? O que você faz?” Dificilmente um jornalista é entrevistado.

Depois que eu disse quem era e os motivos da escolha do jornalismo, Alcides disse: “Que legal, agora podemos conversar melhor”. E assim foi por quase uma hora, contando histórias sobre toda a sua trajetória na literatura, na luta por direitos e também na produção de vinho. Já digo de antemão: as linhas deste texto não serão suficientes para trazer em completude toda a narrativa, história e presença do entrevistado. Mas sempre há oportunidades para sabermos mais. Isso é ele quem diz. 

“Ler. Ler muito. Ler tudo. Mesmo o que não for da sua área. Leia tudo o que cair na sua mão. Isso foi um grande aprendizado que a UEL me deu”, afirma Alcides. Foi professor de Literatura na Universidade Estadual de Londrina de 1971 até meados dos anos 90. Mas mais que isso: Alcides Vitor de Carvalho, 77 anos, foi um dos fundadores da UEL como é hoje, uma universidade. Foi o primeiro Diretor de Departamento de Letras no Centro de Letras e Ciências Humanas, o CLCH. Também deu aulas em colégios conhecidos em Londrina, como o colégio Hugo Simas e Vicente Rijo. 

Mas como toda boa história, Alcides passou por clímax e anticlímax durante toda a vida. Foi perseguido na ditadura militar quando era professor, preso, censurado e depois de um tempo decidiu ir para a França fazer mestrado, mas ainda vinculado à UEL. “Até trabalhei na Sorbonne por um tempo, mas sentia muita falta da minha terra”, foram três anos longe desse lugar com fama de terra que tudo o que se planta dá. Depois de terminar os estudos, voltou à Londrina e continuou como professor. 

Alcides também ajudou na formação do Sindicato dos Professores de Londrina, o Sindiprol e presidiu a entidade de 1982 a 1985. Depois, continuou lecionando na UEL até 1993, quando se aposentou e se tornou Secretário de Cultura de Londrina, de 1994 a 1997. Logo após a secretaria, assumiu a Casa de Cultura da UEL. Mesmo passando pela literatura, lecionando, estudando e depois partindo para a cultura, uma coisa sempre fez parte da vida de Alcides: o amor por vinho. 

“Eu morei alguns anos no Rio Grande do Sul. Estudava em um internato lá. Como era muito longe da cidade dos meus pais em Minas Gerais (Carvalhópolis), eu passava as férias com meus amigos gaúchos. Lá, eles tomavam muito vinho. Até no internato nós dividíamos uma garrafa de vinho para seis estudantes, o colégio mesmo quem oferecia. E depois na França, nem se fala... Lá eles tomam mais vinho que água. Então peguei ainda mais o gosto pela coisa”. Alcides produz o próprio vinho para consumo. Sua vinícola tem capacidade para cerca de 700 litros por ano. 

“Ah, mas não tem vinho que dure aqui na minha casa. Eu sempre ofereço. Antes da pandemia, alunos e professores vinham aqui degustar e bater papo. Não tem como eu vender um vinho, é como uma criança, isso não se vende”, fala com entusiasmo. Alcides afirma que guardou apenas uma garrafa de anos anteriores, uma garrafa produzida em 1978. “Essa eu estou guardando para uma ocasião solene.” Perguntei sobre outros hobbies que surgiram por conta da pandemia. 

“Pois é, eu escrevi um livro. Sempre ensinei meus estudantes a produzir poemas, ler, saber interpretar, mas nunca escrevi. Na pandemia me veio coragem e fiz um livro todo. Chama-se "Os Carvaio: 100 causos mineiros". Simplesmente sentei e escrevi. A pandemia trouxe essa ação porque não podemos sair, convidar os amigos e fazer outras coisas como antes.” Alcides afirmou que o livro ainda vai para edição, mas que foi uma experiência nova que fez durante o período em isolamento. Eu afirmei que ele deveria ter muitas histórias para contar, ele me disse rindo: “Claro, já tenho 77 anos, algumas coisas eu vivi”. De todas as histórias que Alcides me contou em quase duas horas de entrevista a que mistura (quase) tudo o que há na vida dele foi a do “Quarup”. 

Mistura (quase) tudo pois tem: literatura, docência, ditadura, luta pela educação e perseguição política. Só não envolve vinho, mas aí fica para o leitor pegar sua própria taça e escolher o que beber. A história se sucedeu assim: nos anos em que a Ditadura estava perseguindo professores, Alcides foi um dos que teve seu nome nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. Na ocasião, ele colocou o livro “Quarup” de Antonio Callado em sua bibliografia quando dava aula no Colégio Vicente Rijo. Os censores pediram para ele retirar o livro da lista pois era um livro censurado. Ele disse que retiraria, mas os estudantes ficaram alvoroçados para saber qual era a história desse tal de “Quarup”. Uma das estudantes de Alcides era uma Irmã de um convento. Ela ia na Biblioteca Municipal de Londrina e pegava o livro todos os dias, já que ele não podia sair do local. 

A Irmã lia durante duas ou três horas por dia. Até os censores da biblioteca a questionaram: “quem te passou este livro?”. Alcides disse que ela não o entregou. Terminou a leitura e disse que tinha pegado o livro por acaso. O “Quarup” conta a história de um padre que vai para uma tribo no Xingu e vive conflitos internos, principalmente em relação à política da época. Foi lançado em 1967. Depois de contar a história sobre o livro, Alcides me incentivou a ir atrás do exemplar. Um amante da literatura, Alcides deixou 3.500 folhetos de Cordel para a Biblioteca Central da UEL. 3.500 histórias. Talvez, quantidade menor do que ele mesmo tenha a contar, mas, com certeza, tão memoráveis quanto.