O percurso democrático brasileiro, profundamente tortuoso e marcado por desdobramentos aliados aos direitos humanos, é o objeto de estudo do projeto de pesquisa “Direitos Humanos no Brasil Democrático: Trajetória e Perspectivas”, coordenado pelo professor Rivail Carvalho Rolim, do Departamento de História (CLCH)
Em abril de 1984, Carlos Drummond de Andrade versou: “Os direitos do homem são muitos, e raro o direito de gozar deles/ Nem todo homem tem direito a conhecer seus Direitos/ Vista da Lua, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é irretocável”. Na publicação “Ainda o espírito da coisa”, o poeta itabirano questiona a aplicação plena dos direitos atribuídos aos cidadãos, principalmente em um Brasil que ainda trilhava os passos do regime militar (1964-1985), ainda que prestes a ser formalmente encerrado.
Este percurso democrático brasileiro, profundamente tortuoso e marcado por desdobramentos aliados aos direitos humanos, é o objeto de estudo do projeto de pesquisa “Direitos Humanos no Brasil Democrático: Trajetória e Perspectivas”, coordenado pelo professor Rivail Carvalho Rolim, do Departamento de História (CLCH).
Pós-doutor no Observatório do Sistema Penal e Direitos Humanos, na Universidade de Barcelona, na Espanha, Rolim trabalha com questões relacionadas aos direitos humanos há 30 anos. Para entender a discussão da cidadania no Brasil democrático, voltou-se ao estudo do código e estrutura das leis. Seguindo essa linha, o projeto de pesquisa, que conta com mais cinco graduandos como colaboradores, visa analisar e mapear essas questões, com foco nos direitos civis e individuais.
O debate sobre direitos humanos, em termos históricos, é relativamente recente no Brasil. A pauta ganha destaque apenas no final dos anos 70, quando entra em cena o processo de abertura democrática, popularmente chamado de “distensão”. “Com o processo de redemocratização do país nos anos 80, isso entra na agenda. A partir dos anos 90, o Brasil, surfando na época da Constituição Cidadã, vira signatário de uma série de tratados internacionais sobre Direitos Humanos”, explica o coordenador. Nesse cenário, era preciso não só anunciar os direitos, mas também implementá-los.
Assim, ao longo de duas décadas, foram lançadas três versões do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) com intuito de institucionalizar a concepção inalienável e universal dos direitos na democracia. O PNDH 1, implementado no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, deu início à concretização desses conceitos no Brasil. Segundo Rolim, “era necessário ter programas para atendimentos específicos, fazer reformas nas instituições e mudar a cultura, arraigada no passado ditatorial e na trajetória histórica do período republicano brasileiro”.
Os seguintes PNDHs, implementados entre os anos 90 e 2000, tinham como característica serem um programa de Estado que perpetuasse a defesa da cidadania, independentemente da coloração do governo. Nos documentos, foram incluídos elementos em defesa de minorias, como a comunidade LGBTQ+, deficientes, afrodescendentes e povos indígenas. O professor conta que o PDNH 3, lançado no segundo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 2009, foi alvo de uma cultura de ataques aos direitos que se estende até hoje. “Alguns setores mais conservadores enxergaram como ‘revanchismo’ a iniciativa de criar uma comissão de direito à memória das vítimas do período militar”, exemplifica.
O Brasil é um país ferido por décadas de ditadura militar. Segundo Rolim, as violações aos Direitos Humanos cometidas pelo Estado no período iniciaram, posteriormente, a luta dos movimentos humanistas para que houvesse uma transição entre autoritarismo e democracia no país.
“A questão da noção de Justiça de Transição aparece no fim da Segunda Guerra Mundial”, explica. “Os sobreviventes entenderam que não era possível reconstruir a sociedade respeitando os direitos humanos sem que os responsáveis pelas atrocidades da guerra fossem punidos”. Dessa forma, o conceito de Justiça de Transição era um tópico importante para a construção da nova democracia brasileira nos anos 80, contribuindo para a reparação moral das vítimas de opressão e respeitando a memória e a verdade do período.
O coordenador do projeto esclarece que, diferente de outros países que enfrentaram situações semelhantes, a nova postura em relação a um passado traumático não encontrou a força para se efetivar. “Nunca houve a coragem necessária para enfrentar a Justiça de Transição. A Lei da Anistia (promulgada em 1979 e que permitiu o não julgamento de torturadores e a anistia aos exilados pelo regime) colocou perseguidos e perseguidores no mesmo nível, assim não responsabilizando o governo pelas arbitrariedades e horrores cometidos naquele período”.
Entre a impunidade e o esquecimento, o movimento de defesa dos direitos humanos tomou medidas para lidar com a questão, implementando comissões de direitos humanos por todo o país: no Estado, em universidades e até no Governo Federal. “Dessa maneira, pode-se identificar diversas pessoas que foram perseguidas, torturadas e mortas pelo regime militar. É uma forma de permitir que tais pessoas tenham direito a uma indenização. Mas, nunca foi constituída uma verdadeira Justiça de Transição”, conta Rolim.
Segundo Rolim, a herança deixada pela gestão anterior, do presidente Jair Bolsonaro, representa uma série de retrocessos no âmbito dos direitos humanos, tanto na história nacional quanto mundial. “É um retrocesso para a cultura dos direitos humanos em todos os ângulos. Bolsonaro não é um fenômeno único, mas um que vem acontecendo em várias partes do mundo e fragilizando as garantias constitucionais”. Durante a campanha presidencial em 2018, o então candidato chegou a dizer que movimentos e organizações de direitos humanos eram um “desserviço ao nosso Brasil”.
“No Brasil, Jair Bolsonaro encontrou um cenário muito favorável para a retomada da valorização do regime militar, por exemplo. Ele acaba por fragilizar os direitos das pessoas, principalmente das populações mais vulneráveis”, relata. Concepções como o negacionismo, violência constitucional e ataques a minorias foram (ainda mais) reavivadas nesse período, lembretes do passado autoritário no qual a democracia se ergueu. “Não é linear, existem avanços e retrocessos. É assim que funciona a história”.
Através de uma análise profunda dos Planos Nacionais de Direitos Humanos, o projeto de pesquisa delineia não só como os direitos refletem o processo democrático no Brasil, mas também as perspectivas sociais dos indivíduos universalmente. O coordenador ressalta como o caráter amplo dos direitos implica numa perspectiva multicultural. “É preciso compreender que esses direitos não servem para todos os parâmetros e para todos os países. A partir de pesquisas, encontramos em todos eles elementos de respeito à dignidade humana”, explica Rolim. Segundo ele, a ocidentalidade desses conceitos pode ser ultrapassada a partir do contato intercultural das sociedades, o que se vê acontecendo desde a luta das mulheres na Arábia Saudita pelo direito de dirigir, por exemplo, até os movimentos das minorias brasileiras, buscando reconhecimento, inserção e igualdade.
Por meio do projeto, Rolim espera que as pessoas possam entender que os direitos humanos possuem uma longa trajetória. “Existe uma cultura, constituída ao longo do tempo, de respeito aos direitos humanos. A implantação dos direitos contribuiu para termos uma sociedade mais pacífica, pois a partir do momento que se respeita os direitos do outro, se permite uma convivência equilibrada e civilizada”, enfatiza.
As pesquisas visam mostrar que os direitos humanos não são conceitos distantes, apenas “vistos da lua”, como contados nos versos de Drummond. Para o professor, eles estão presentes na vida acadêmica, profissional e pessoal de qualquer indivíduo, e este pode e deve se utilizar de suas aplicações para gozar de uma melhor qualidade de vida. “Respeitando a cultura dos direitos humanos, as pessoas passarão a se sentir incluídas ao invés de excluídas, pertencendo a uma sociedade mais abrangente.”
Via: O Perobal
Foto: Willian Fusaro/Agência UEL