Mulheres de luta e a luta das mulheres

Sobre dores, perdas e o trabalho de tecer redes 

Por Mariana Ornelas e Redação Alumni UEL 

 

  • Compartilhe:

“A minha irmã era uma pessoa alegre. Ela se envolvia em muitas coisas. Estava sempre disposta...” conta, com lágrimas, Silvana Mariano, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. Ela tentava responder à pergunta “como era sua irmã”, Cidnéia Aparecida Mariano da Costa, vítima de feminicídio que a deixou tetraplégica, em 2019. Muito amada pela família, sempre disposta para os amigos, mãe presente de quatro filhos, Néia, que tinha a habilidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, que amava viver, morreu aos 35 anos, no dia 30 de maio de 2021. 

Cidnéia teve sua vida interrompida por um ato que, pouco antes, era chamado de crime passional (como se houvesse amor ou paixão em findar a vida de alguém). Só em 2015, com a Lei federal 13104, a Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres em razão do gênero passou a ser reconhecido como tal. Como resultado dos avanços na legislação brasileira e da persistência de Silvana e de outras mulheres por justiça, o agressor de Néia, Emerson Henrique de Souza, foi condenado a mais de 24 anos de prisão.

Silvana Mariano transformou sua dor em reforço a uma causa que já fazia parte do seu dia a dia, há muitos anos: a defesa das mulheres, de seus direitos, de suas vidas. Como pesquisadora em Estudos de Gênero na UEL, juntou-se a outras feministas e ativistas, principalmente da Frente Feminista de Londrina, e formaram o Néias – Observatório de Feminicídio de Londrina, para amplificar a repercussão de casos de feminicídio consumado e de feminicídio tentado. 

Cidnéia foi vítima de feminicídio (Reprodução/Facebook)

“Fizemos o Observatório porque percebemos que com o olhar da imprensa, o caso da Néia poderia ser julgado com celeridade, mas também para alertar e mostrar como essa é uma realidade de Londrina e do Brasil”, afirma Silvana Mariano. No site do Observatório que leva o nome de Néia e que foi criado quatro meses antes de sua morte, pesquisas apontam que há uma média de duas a três tentativas de feminicídio em Londrina, por ano. Muitos deles demoram anos para o processo chegar a uma sentença.

Uma rede de proteção como política pública

Silvana Mariano trabalha há mais de vinte anos como pesquisadora de Estudos de Gênero, mas não começou na Universidade. Ela iniciou sua trajetória, bem jovem, como assessora no que conhecemos hoje como Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Londrina. A Secretaria começou como uma Coordenadoria Especial da Mulher, a primeira no Estado do Paraná e uma das primeiras do Brasil. Com a Coordenadoria, criada em 1993, Londrina foi um dos municípios pioneiros na construção de políticas públicas e de enfrentamento da violência contra as mulheres.

“Quando começamos, fomos contra tudo e contra todos, mas conseguimos. Nem começou com o status de Secretaria, foi um trabalho muito duro”, afirma Elza Correia, a primeira coordenadora da Mulher em Londrina. Elza também foi vereadora, deputada, é professora de formação e integrante da diretoria da Alumni UEL. Na vida política, sempre colocou a pauta das mulheres em destaque. Logo no primeiro ano de existência, a Coordenadoria ganhou um prêmio na primeira Mostra de Experiências Municipais Sobre Defesa da Mulher Contra a Violência, do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) e da Fundação Ford. 

“Antes do prêmio do IBAM, nós que trabalhávamos na Coordenadoria, pedíamos ajuda para empresários, amigos, conhecidos e fizemos acontecer, mesmo sem muito orçamento. Contra tudo e contra todos. Se hoje há em Londrina projetos na área da violência contra a mulher, vara especializada, promotoras, juízas envolvidas, tudo começou com um pingo de mulheres, mas determinadas e entendendo que essa questão da violência contra a mulher não poderia prevalecer”, afirma Elza Correia. 

Observatório da Violência contra às Mulheres

Hoje, consolidada e com verbas públicas direcionadas, a Secretaria da Mulher de Londrina tem três eixos: “prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher; capacitação para o trabalho e inclusão produtiva; formação para a cidadania.” Além de desenvolver projetos com os demais órgãos da prefeitura de Londrina e o Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Londrina, o município tem outras iniciativas. É o caso do Observatório da Violência contra as Mulheres (clique aqui para saber mais), projeto em parceria entre a UEL e da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e a Secretaria da Mulher da Prefeitura de Londrina, com o objetivo de gestar e unificar os dados sobre a violência contra mulher em relação às frentes de atuação e redes de proteção à mulher no município.

Elaine Ferreira Galvão, socióloga formada pela UEL, uma das diretoras da Alumni UEL e assessora de Planejamento e Gestão da Secretaria da Mulher, fala sobre a importância de manter as políticas públicas voltadas à proteção e ao acolhimento das mulheres. “Temos várias oficinas voltadas para a geração de renda, em parceria com as universidades e com a Secretaria do Trabalho. Além das ações de enfrentamento à violência contra a mulher, com articulações em várias áreas de atuação da prefeitura”, afirma. A Secretaria da Mulher também conta com a Casa Abrigo Canto de Dália, que acolheu 25 mulheres e fez 471 atendimentos e orientações neste primeiro semestre de 2021.

Em uma ação integrada, a Secretaria da Mulher de Londrina coordena a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que conta com reuniões mensais com a Delegacia da Mulher, Juizado de Violência Doméstica e Familiar, Instituto Médico Legal (IML), promotorias, patrulha Maria da Penha e hospitais. Chegar a uma rede de enfrentamento que envolva a saúde, a educação, a cultura e tantos outros setores não foi uma tarefa fácil. “Hoje, a Rede Municipal de Saúde tem protocolos para saber quando uma mulher chega no hospital sendo vítima de violência doméstica, porque tem como  porta de entrada  as Unidades Básicas de Saúde”, conclui Elaine.

Em Londrina também há órgãos como o NUMAPE (Núcleo Maria da Penha), ligado à Universidade Estadual de Londrina, que tem como objetivo garantir o atendimento jurídico e psicológico de mulheres de baixa renda que sofreram violência doméstica. De acordo com o NUMAPE, o Núcleo já fez, desde 2009, mais de 46 mil atuações (ajuizamentos, atendimentos, audiências e outros).  

A questão estrutural

Entre março de 2015 (quando a Lei do Feminicídio foi implantada) e março de 2020, houve 541 processos de feminicídio no Paraná. “Não nego a evolução que tivemos, mas falta muito ainda. A própria Lei Maria da Penha é muito recente”, comenta Elza Correia. Ela considera que, para mudar este sistema sexista, não há outro caminho a não ser pela educação. “Essa educação sexista, horrorosa que nós temos hoje, defendida até por parte da sociedade, defendida pela ‘escola sem partido’, para que não seja discutido o sexismo nas escolas, isso é violento. Isso é uma forma de perpetuar o que não desejamos em uma sociedade democrática”, reitera. 

À época em que era vereadora, Elza se posicionou contra a retirada da questão de gênero do Plano Municipal de Educação. É que, no entendimento dela, a escola é, muitas vezes, a única porta que uma criança ou adolescente pode encontrar para denunciar um abuso que, em boa parte dos casos, ocorre dentro de casa. “O caminho é a educação. Uma educação não sexista, democrática, universal. Uma educação que respeite a questão de gênero, que preze pela igualdade de oportunidades, respeito ao outro, aos direitos democráticos. Escola não é só História, Geografia e Matemática, é formar cidadãos para a vida”, conclui Elza.

Serviço

NUMAPE – Segunda à Sexta-feira, das 8h30 às 17h. As mulheres que necessitarem de atendimento jurídico podem agendar previamente pelo Telefone: (43) 3344-0929 e se dirigir à sede do Núcleo (Rua Brasil, 742). 

Patrulha Maria da Penha – Central 153

Delegacia da Mulher de Londrina - Telefone: (43) 3322-1633

Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Londrina – Telefone: (43) 3378-0113

Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CAM) – Telefone: (43) 3378-0132